Crónicas de Viagens – Marrakech por Sandra Vieira
Marrakech: A aventura das aventuras
Eramos quatro (dois casais), com vinte e poucos anos e o “Clone” (telenovela brasileira gravada em Marrocos) tinha marcado uma fase importante das nossas vidas. O encanto foi tal que decidimos conhecer um destino a 1800 quilómetros de casa a bordo de um velhinho mas guerreiro Volvo e com um mapa na mão. Sem GPS, sem reservas de hotéis mas com uma vontade do tamanho do Mundo. E uma inconsciência própria da idade.
Saímos do Porto e a primeira paragem foi no Algarve. Retemperar forças com uma noite bem dormida e ultimar os pormenores. Acordamos com ainda mais vontade.
Não tardou e estávamos em Algeciras prontos a apanhar o ferry com destino a Ceuta. Uma viagem curta mas bastante atribulada provocada pela agitação marítima que justificou a opção pela rota mais curta. Do outro lado, um outro mundo.
Formalidades cumpridas, passaporte carimbado e um novo mundo se abre. Os primeiros (longos) metros fazem-nos duvidar da escolha. Mas o calcorrear do caminho vai-nos descansando. A primeira paragem foi Tânger, uma cidade portuária com um encanto próprio mas que, tal como Rabat e Casablanca são cidades tão “europeizadas” que serviram apenas para descansar.
À medida que caminhamos para sul e para o interior, o verdadeiro Marrocos abre-se e mostra-se como é: cheio de belas paisagens, com um povo do mais acolhedor que há e com uma cultura que nos deixou encantados.
E eis que chegamos ao principal destino: Marrakech, cidade imperial. A primeira impressão é igual à das restantes cidades por onde havíamos passado: o trânsito é caótico e cada faixa de rodagem transforma-se em três ou quatro, com carros, motas e cavalos a par lutando pela pole position. Parámos para nos situarmos e nesse mesmo momento fomos interpelados por um marroquino que se prontificou a mostrar hotéis onde pudéssemos ficar. E lá seguimos a pequena motorizada que nos levou a alguns sítios inenarráveis. Prestes a abandonar o guia improvisado, eis que entramos num pequeno hotel dentro das muralhas da Medina. Não era luxuoso mas tinha um ambiente completamente diferente dos demais. Com uma decoração típica e um “cheiro a limpo”, foi este o nosso ponto de partida para conhecer Marrakech. Mas antes de seguir para os nossos quartos tivemos que cumprir um ritual que iria virar rotina: regatear o preço. Ainda que pouco à vontade, lá entramos no espírito que tanta satisfação lhes proporciona. E a nós deu-nos um jeitaço… O guia seguiu com um maço de tabaco e um sorriso de orelha a orelha.
A localização do hotel não poderia ser melhor. Em pleno centro da cidade velha, junto à tradicional Medina, mas com um sossego fora do comum. Depois de instalados, decidimos explorar um pouco dos arredores do hotel. Mal saímos deparamo-nos com um jovem vestido com uma bata azul que rondava os carros estacionados junto ao hotel. Era um “guardian” e tinha como missão guardar os carros estacionados naquela zona. Pelo sim pelo não, pedimos que o nosso carro fosse alvo dessa vigilância e pagamos 10 dirhams (+- um euro). A verdade é que o jovem virou um verdadeiro guardião do carro durante três noites. Uma das noites, o calor fez-me despertar bem cedo e constatei que o jovem mantinha-se, firme e hirto, no seu posto.
Na primeira manhã, após um surpreendente pequeno-almoço, saímos sem destino. Tínhamos ideia do que queríamos visitar mas primeiro queríamos sentir o pulso à cidade. Tentamos não parecer turistas embora a Raquel fosse loira e com olhos azuis. E, tirando uma outra brincadeira envolvendo camelos, nunca sentimos nenhuma animosidade.
Enquanto deambulávamos pela cidade, fomos abordados, educadamente como sempre, por um condutor de charrete que se propôs mostrar-nos parte da cidade ao longo de duas horas. Negociamos o valor, diminuído drasticamente pela oferta de um maço de tabaco, e lá fomos os quatro à descoberta da cidade vermelha. Passavam poucos minutos das 10 horas. SETE horas depois, e já cansado de nos ver, o Akim lá nos “obrigou” a deixar a charrete. “Esta é Praça Jamaa el Fna. Desfrutem”. Eram cinco e meia da tarde. Olhamos à volta e pouco mais era do que uma grande praça despida de gente e com várias lojas à volta. Bebemos um pouco de água, consultamos o mapa para nos situar e eis que parecia termos sido teletransportados para outro local. Num verdadeiro abrir e fechar de olhos, aquela praça vazia transformou-se num dos mais belos locais onde já estive. Encantadores de serpentes, bailarinos tradicionais, pequenos macacos a mostrar habilidades, tatuadoras, vendedores de chá e bolinhos, vendedores de tudo e mais alguma coisa. Num ápice fomos “engolidos” por centenas de pessoas vindas de todos os lados que se aglomeraram naquela praça como se fosse o único sítio onde pudessem estar. E a verdade é que era mesmo assim. Sem saber como, estávamos no local onde tudo acontecia. Os sons que se misturavam em plena harmonia, os cheiros quentes e apaixonantes que nos entravam pelas narinas adentro, a amabilidade das pessoas que nos tratavam como uma delas… Indescritível. E tornou-se ainda mais perfeito quando, ao espreitarmos no meio da multidão, avistamos o mais belo pôr-do-sol que algum dia vimos. E aí percebemos o porquê de “cidade vermelha”. O céu azul pintou-se em tons encarnados e juntou-se à festa dando ainda mais calor a um dia que ficará para sempre na nossa memória.
Seguiu-se uma tatuagem de hena, um chá e um bolinho (picantes qb), um périplo pelas mais variadas lojas e um regresso ao hotel marcado pela felicidade espelhada no rosto de cada um de nós. Para trás tinha ficado uma visita aos Jardins Majorelle, a uma antiga escola do Alcorão, um avistamento das montanhas do Atlas e uma refeição típica de rua.
No dia seguinte começamos com uma visita à Palmeraie, um oásis de milhares de palmeiras, e depois perdemo-nos pelas labirínticas ruas da Medina de Marrakech. Voltamos a comprovar a amabilidade dos marroquinos para quem negociar é como respirar tornando-se impossível comprar o que quer que seja sem regatear. Deixei t-shirts, sapatilhas e só não fiquei eu porque não tinham como trazer os camelos…
A partida foi nostálgica. Estávamos a deixar um local onde tínhamos vivido intensamente cada segundo e onde tínhamos descoberto novas sensações.
Regressamos pelo interior com paragem em Fez, mais uma cidade imperial. Outra realidade mas a mesma simpatia e o mesmo carinho para com os portugueses. Em Fez, a Medina é ainda mais antiga e cheia de ruas e ruelas todas iguais mas tão diferentes. Em cada loja que se entra é impossível não comprar ou trocar. Foi assim que fiquei praticamente sem roupa e o velhinho Volvo virou carcaça de um puzzle onde cada peça foi encaixada na perfeição.
Felizmente, conseguimos passar a fronteira sem grandes revistas, ao contrário do carro que ia à nossa frente e que foi literalmente esvaziado e visitado por dois cães pisteiros. Visto tão de perto foi assustador. E mais teria sido se tivéssemos que desmontar e voltar a montar o puzzle.
Saudades, Marrakech!
Texto e imagens: Sandra Vieira
(Vencedora da edição de maio)